Mulheres que viajam sozinhas

 Na semana passada, o governo federal divulgou, em tom de vitória, que uma seguradora internacional classificou o Brasil como o segundo destino mais seguro para se viajar na América, perdendo apenas para o Canadá, primeiro colocado no continente. Cheguei a ver um vídeo em uma rede social em que o ministro do Turismo (alguma figura do chamado Centrão) comemora e repercute a notícia. Para uma seguradora, uma daquelas empresas que trabalham com o risco de algo acontecer a algum de seus segurados e que precificam vidas humanas em planos que podem ser divididos em várias vezes no cartão, o Brasil é um bom lugar para se viajar.

Eu vi esse vídeo e fiquei pensando nele, naquela informação. Alguma coisa não batia.

Talvez o fato de que, alguns dias antes, uma mulher venezuelana, viajando sozinha, de bicicleta, pelo Brasil tenha sido morta violentamente. Talvez seja também o fato de que houve quem dissesse e digitasse por aí que a moça deu mole, viajando sozinha, sendo mulher. Quase como que se dissessem que ela mereceu a violência de que foi vítima, já que não respeitou o código de violência e a lei do mais forte que impera no nosso país (e não só no nosso). Para mim, um país onde uma mulher, artista, ciclista, não pode viajar sozinha sem ser morta não pode ser considerado um país seguro.

Ainda que eu pudesse usar a distância do fato, ocorrido bem longe de onde eu moro, para de alguma forma ignorar a existência desse tipo de violência, a vida real é mais dura e não permite esses dribles.

Sou pai de duas meninas. Elas adoram andar de bicicleta. Uma delas tem um plano pro futuro: comprar uma casa-carro e viajar muito. Eu ainda não contei pra ela que esse plano é muito arriscado. Na verdade, até mesmo quando saímos para pedalar juntos pelo bairro eu já preciso conter minha ansiedade e o meu pavor de que algo aconteça com uma delas. Também não contei todos os motivos pelos quais ela não pode ir sozinha para a escola ou o que me faz insistir para que elas andem sempre bem perto de mim, na rua, no shopping, no mercado, ao alcance dos meus olhos e das minhas mãos. É que ser mulher não é seguro no Brasil. Ser criança não é seguro no Brasil. Ter filhos não é seguro no Brasil. E o pior é que o vilão dessa história não é um psicopata ou coisa do tipo. Essas figuras de filme existem em quantidade bem menor do que podemos acreditar. O perigo, muitas vezes, pode vir de alguém considerado normal, que paga suas contas e, quem sabe, até compra pacotes de viagem e seguro de vida.

Vou seguir sem contar toda a verdade para elas. Quem sabe as coisas não melhoram até elas terem idade para viajar sozinhas? Posso me iludir, não posso?


Texto dedicado à memória de Julieta Hernández, artista venezuelana, ativista e cicloviajante, morta no Amazonas no final de 2023 enquanto retornava para o seu país, viajando sozinha e de bicicleta.


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